“O arquivo é primeiramente o produto de um julgamento, o resultado do exercício de um poder e autoridade específicos que envolve guardar determinados elementos em um arquivo ao mesmo tempo em que outros são descartados”
Achille Mbembe
Há algo entre o arquivo, a memória e o tempo que não cabe na teoria, nos dogmas, na academia institucional. Há algo entre o tempo, o corpo e a matéria que nunca saberemos explicar, sentir talvez, viver sempre sem saber. O arquivo é o que nos move a um tempo, o desejo pelo arquivo é um desejo pelo tempo, por compreender a memória viva.
O trabalho de pesquisa é sempre muito complexo, custo a ler com os olhos, é demorado mas exige pressa, exige calma, mas tenho urgências. Toda pesquisa tem um recorte, sempre dizem isso – é preciso ter metodologias, recortar, criar fronteiras que te circulem e te impeçam de ir para além do seu recorte. Esse é um dos riscos da pesquisa. Mas não fazemos pesquisa para prestar contas àqueles que nunca olham pro tempo e pra terra como a gente olha. Não fazemos pesquisa esperando a validação daqueles que acham que o tempo corre. Ele não corre, ele se movimenta. Eu/Nós não paro/paramos um único instante, e é a memória, esse desejo pelo tempo e a fuga pelo arquivo, que nos coloca em movimento.
Dentre tantas pesquisas, essa que se apresenta nesse site leva já no título o desejo pelo arquivo, essa urgência de estarmos no acervo, de forjar uma presença na história, de forjar a própria história sendo ela nós mesmos. É preciso reconhecer que nós merecemos um acervo inteiro, merecer no sentido de: nós temos o direito a estar no arquivo, a ter nossas vidas preservadas no e pelo tempo.
Mbembe tem uma forma muito direta, pragmática e didática de falar sobre poder e colonialismo, e as formas de perpetuação da violência colonial no mundo moderno. Ler o que ele diz é como enxergar o Brasil sob ótica daqui, do lado de cá da fronteira (e sobre/sob as fronteiras). Dos documentos que não foram queimados e que teimam em existir amontoados em algum acervo precário. Dos sítios arqueológicos dos sertões de dentro e dos centros urbanos. De Canudos ao Caldeirão, de Palmares a Alcântara, passando pelos pedaços de asfalto das bases aéreas da segunda guerra mundial, e os azulejos e urnas fúnebres de Belo Monte. Dos incêndios nas cinematecas, museus, acervos, porões, bibliotecas, casas de reza, terreiros e barracões, e das prisões arbitrárias, do fogo da guerra que nunca cessou. Da guerra nos becos e vielas, nas trilhas das matas e nos garimpos a céu aberto. No Curió, no Alto da Paz, no Pici, no Jangurussu e/ou no Pirambu.
Para falar de arquivo e de memória é necessário falar de poder. Sem isso não se avança em nada, sem isso permanecemos numa apologia a um passado estático e um presente dependente do futuro. Se o Brasil é uma ficção, o seu arquivo, ou seja, sua história, é resultado direto da anulação, da morte sistêmica, do apagamento deliberado, das escolhas do poder monumental, do estado e da igreja.
No ano em que um certo Brasil comemora o centenário da semana de 22 e o bicentenário da independência formal da metrópole, reforçando cada vez mais um ideal de nação que se forja sobre os escombros e as ruínas do que poderia ser – jamais sendo -, nesse mesmo ano a destruição do que ainda resta de não-Brasil segue. Mais uma vez um outubro se chega com suas contradições e com as escolhas paradoxais, todas as cegueiras seletivas e objetivas a se fazer, e todos os sonhos que nunca serão vistos. (Mas não é sobre esse ponto específico a que essa imagem vem falar)
Entre os jogos de verdade, poder e monumento, perceber que as políticas de memórias (também em suas complexidades) são caminhos possíveis e também impossíveis de se trilhar, não como caminhos exatos, lineares e objetivos, mas sim, aquilo que na curva se constrói.
Que a gente não se deixe enganar pela disciplina “história da arte”, e nem deixe que ela continue sendo escrita pelas mãos de quem sempre a escreveu, quem sempre a documentou, quem a construiu sobre a lógica do poder. Que outros arquivos surjam, com outros problemas, com outras disputas.
Agora, depois de olhar para arquivos de uma nação nascida do apagamento e do esquecimento, montada a partir da alegoria da morte e da violência, da política anti-negro e anti-indígena, e do ódio mascarado de nacionalismo. Agora em que teimo em fugir pelo arquivo e nas frestas do tempo que se opera por entre ele. Agora em que… antes que os caracteres se encerrem, antes do fim do mundo que nunca se encerrou, no fim das contas, não é sobre o mal do arquivo, e sim, sobre o seu poder.
Esperamos que você que nos lê se lembre disso: PROTEJA SUA MEMÓRIA.
Difícil tarefa, mas seguimos na luta.
Por Clébson Francisco, com contribuição de Ana Aline Furtado e George Ulysses
